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É frio, porém, não menos real. A organização social atual repete, por meios diferenciados, com certeza, mais apurados e com uma consciência mais ampla, a mesma intensidade de sofrimento que as gerações passadas sentiram. Com uma conotação mais cética, é plausível afirmar que, a evolução travada e conquistada, torna-nos, crescentemente, mais bárbaros e vis. Sabe-se o que ocorre nas comunidades, com as pessoas. Tem-se a sabedoria sobre os malefícios das condutas adotas sobre a economia, os direitos humanos, as guerras e as imposições comerciais desmedidas, mesmo assim, faz-se. Há um agravamento, especificamente no Brasil, para a ascendência espiritual e religiosa dentro da cultura. Um povo fervoroso, a nação, celeiro do componente religioso em todo o planeta. Ao mesmo tempo, sem generalização, observam-se laudos discursos próprios e singulares, antagônicos às atitudes adotas frente às vicissitudes percebidas à vida de milhões de pessoas.

É relevante afirmar que não é o mundo, em si, que aplica sobre o homem uma pena condenatória e assim, levando todos os seres a ressentimentos descabidos e irracionais a cerca das próprias mazelas. A somatória das atitudes de cada indivíduo, em seu exercício de cidadania, é que conduzem para a tragédia ou a comédia da vida diária. O universo é nada menos do que uma vítima indefesa. Dentro dessa razão, a humanidade apropriou-se de mecanismos capazes de combaterem esse desconforto, almejando transformar a vida em algo melhor do que a sentiam. Obviamente, sem colocarem-se à disposição da transmutação pessoal, da identidade e das responsabilidades de cada um para com os processos. Em essência, incorporamos a cultura da reparação, repetindo escolhas, refazendo caminhos, na ilusão em crer que a coisa em si mudará, sem a precisão da própria alteração.

Três instituições formam as principais engrenagens para a reparação humana. A ligação com Deus não está dentro desse mecanismo, mas, a institucionalização religiosa, essa sim atua fortemente. A religião passou a ser um instrumento de poder das mãos dos homens, capaz de controlar, de punir e de manter arrebanhados milhões de seres humanos em uma mesma direção, ausentes, absolutamente, de todo e qualquer poder criativo e modificador do sistema. A igreja de fato consola, disseminando a passividade e a submissão. A mesma assumiu um caráter tão materialista, que os próprios líderes e condutores, projetam sobre relatos históricos, as conveniências necessárias para se mantiver e explorarem, financeira e geográfica e politicamente, as fragilidades de centenas de comunidades. Chama à atenção. É notório o paradoxo: profetiza-se um tipo de pressuposto e atua-se em outra direção e isso se dá tanto com os líderes religiosos como com parte de seus seguidores. Entretanto, no final, tudo vale a pena, pois os pecados acabam sendo perdoados quando diante do desconhecido, ou o livre arbítrio é racionalizado perante algumas insanidades. Além do que, se “Deus” quer assim, não há ressentimento, supostamente, que sobreviva.

Nietzsche (1870), além de apontar o segmento religioso, disserta sobre a segunda peça fundamental para o alcance das reparações. A justiça, que nem sempre tem êxito em seu princípio filosófico, de ajustar e readequar, transformou-se em um meio onde as pessoas civilizadas e intelectualizadas, podem exercer suas necessidades de vingança, através de diretrizes socialmente aceitas. Vai além disso, imprescindíveis para o equilíbrio e a harmonia das pessoas que vivem em grupo. Mesmo marginalizando e corroborando com a implantação de instituições de ensino para a perpetuação do crime, a justiça aplica o que se legisla, utilizando-se de fatos, como também de subjetividades para determinarem o rumo e o caminho das pessoas. A justaposição cultural é tão significativa que os personagens que atuam na área jurídica, ou são endeusados, doutores inclusos em becas, ou vistos como pecaminosos que precisam da devida punição. Há uma teatralidade, formal, que designa o rumo da vida de pessoas que buscam esses serviços.

Particularmente, acrescento outra instituição que, em verdade, faz a associação das duas anteriores, assim como de todas as demais que se derivam. O conhecimento acadêmico, oficial para a transcrição das leis funcionais da dinâmica diária, não deixa de ter um caráter engessado. Seus condutores, tão endeusados, assim como os líderes religiosos ou os atores das peças jurídicas, estabelecendo outra forma de poder, mais uma maneira de controle e, por incrível que pareça, um tolhimento à criatividade e a expansão de todo um saber informal que passa a ser desconsiderado. Mesmo assim, somos semelhantes aos nossos, com toda a hierarquização que tende a diferenciar e igualmente perpetuamos as mesmas questões que atropelavam as sociedades antigas.

                “Contudo, somos iguais a nossos antepassados em algum sentido, pois nosso desconforto tampouco foi apaziguado diante de um mundo absurdo. Saber que a pergunta sobre o sentido do mundo não pode ser respondida objetivamente por criaturas mundanas não suprime o horror humano diante de um mundo que parece horrivelmente arbitrário, penoso e sem sentido. Não queremos ser enganados, mas tampouco queremos cair em desespero diante da vida.”

DRUCKER, Cláudia Pellegrine. Estética. Editora UFSC, 2012

                A realidade traduz uma lógica: não queremos ser enganados … pelos outros, contudo, abrimo-nos, permanentemente, ao autoengano. Deus, dentro de uma linha de interpretação e conduta, assim como as demais formas de poder, servem como partes externas para as projeções da identidade individual de cada ser. Uma maneira de delegar a responsabilidade a outrem, mantendo-se, perpetuamente, na zona de conforto tão desejada e conveniente, já que nos exime da do comprometimento para com os que nos cercam e os contextos em que nos inserimos. Poucos dotados de grande sapiência, acompanhados do antagonismo do nada sei. A maioria, percebendo-se menos por não participarem de requintado ciclo erudito, por serem apropriados de vasto e rico saber, desconsiderado por não seguir o protocolo. E sobre essas ambivalências, vamos nos conduzindo pelas forças de várias vidas. Denota-se aqui, o princípio que caracteriza a convivência consigo e com as pessoas, o trato para com as outras espécies e o espaço em que participamos.

Não há de ter consolo para o sofrimento. É preciso resgatar o verdadeiro caminho para a felicidade. Se Deus existe, tem que estar dentro da alma, sem pré-requisitos, muito menos padronizações. Sua morada está, incondicionalmente, na morada de seus filhos. Se há essa dualidade, é preciso coerência em sê-lo, sem critérios para inclusão ou exclusão. É preciso crer, sendo íntegro ao que se confia, iniciando por si mesmo, como imagem e semelhança, um semideus em formação. Ser, absolutamente, coerente. Para ser justo, a Lei é prescindível, pois basta sê-lo, também. Fala-se de um princípio, de um valor e se é isso que desejamos alcançar, é nessa direção que precisamos caminhar. Um movimento que parte do íntimo e tome conta do externo, sem esperar, ansioso, com que se façam primeiro ou que se tome de expectativas para uma reciprocidade tida coo justa. Ou se é justo, ou apenas se é donatário de falácias ineficazes e enganosas. A magnitude do saber está no outro e nas coisas e não naquilo que armazeno em mim. Afinal, somos partes minúsculas de um todo infinito e é a esse conhecimento que precisamos nos aproximar. Para isso, devir está no respeito , sem a necessidade da devida aceitação de tudo, mas na simplória compreensão de que cada um encontra-se em um lugar diferente e que a visualização sobre o mundo se dá de maneira desigual. Isso é abandono do egoísmo, princípio da fraternidade e a real humanização que nos cabe enquanto presentes nessa matéria em que estamos para a edificação de algum sentido. Tudo parte do eu.

“Fiz o que era mais urgente: uma prece. Rezo para achar o meu verdadeiro caminho. Mas descobri que não me entrego totalmente à prece, parece-me que sei que o verdadeiro caminho é com dor. Há uma lei secreta e para mim incompreensível: só através do sofrimento se encontra a felicidade. Tenho medo de mim pois sou sempre apta a poder sofrer. Se eu não me amar estarei perdida — porque ninguém me ama a ponto de ser eu, de me ser. Tenho que me querer para dar alguma coisa a mim. Tenho que valer alguma coisa? Oh protegei-me de mim mesma, que me persigo. Valho qualquer coisa em relação aos outros — mas em relação a mim, sou nada. É tão bom ter a quem pedir. Nem me incomodo muito se eu não for totalmente atendida. Eu peço a Deus para eu ser mais bonita — e não é que meu olho faísca ao mesmo tempo que meus lábios parecem mais doces e cheios? Eu peço a Deus tudo o que eu quero e preciso. É o que me cabe. Ser ou não ser atendida — isso não me cabe a mim, isto já é matéria-mágica que se me dá ou se retrai. Obstinada, eu rezo. Eu não tenho o poder. Tenho a prece.”

 

Clarice Lispector, in ‘Um Sopro de Vida’   –  http://www.citador.pt/textos/ninguem-me-ama-a-ponto-de-ser-eu-clarice-lispector

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